1. INTRODUÇÃO
Esta é uma pequena novela de Tolstói dividida em duas partes onde conta uma espécie de ascensão e queda de um relacionamento amoroso, revelando vários dramas que um casal pode enfrentar no seu relacionamento.
2. DESCRIÇÃO
A história é contada por María Aleksândrovna, uma moça jovem aos 17 anos que perdeu os pais e vive com sua irmazinha de 5 anos, Sônia, e sua governanta, de nome Kátia. Na tristeza inicial e união das três, eis que Sierguiéi Mikháilitch, de 37 anos, administrador dos bens da rica família Aleksândrovna torna-se responsável por esta família, assumindo o governo e a educação da família.
Neste contexto inicia-se o romance entre María e Sierguiéi, cuja narrativa de Tolstó é muito bela, sutil e perspicaz em desvendar um universo feminino e jovial de María. Ela vive na simplicidade do campo e tem alma singela, piedade inocente e bela. É assim que se demonstra a evolução emocional de María que percebe atenta ao menor movimento da atenção do experiente Sierguiéi a ela, este por sua vez é um homem cansado do mundo e demonstra não querer mais que estar ali no campo na alegria simples dessa vida familiar que lhe foi confiada. Ela vai percebendo o seu gosto pessoal ao notá-la, suas preferências, como ele prefere a discrição e modéstia ao que María chamou de “coquetismo da simplicidade”, e em cada pequeno movimento de alma Tolstói desvenda uma alma feminina apaixonada que deseja, percebe e desvenda a pessoa de seu amado querendo atender cada parcela de sua vontade.
Por fim, os dois revelam-se amantes e acordam o casamento, terminando a primeira parte do livro.
A segunda parte do livro María muda-se com o marido para a cidade, e como é comum de um grande centro, este possui seu poder atrativo sobre a simplicidade de alma do campo de María. A “agitação do mundo” a seduz e ela deseja viver a vida das cortes. E nisso, aos poucos vai percebendo um distanciamento de Sierguiéi. Percebe que ele vai se resignando a atender as vontades dela com o seu encantamento com a cidade ou as cortes. E assim começam a desentender-se mais e mais:
- Decididamente, não te compreendo — disse eu, parada no mesmo lugar e seguindo-o com os olhos -, dizes que estás sempre tão calmo (ele jamais o dissera). Porque falas comigo de modo tão estranho? Estou pronta para sacrificar por ti este prazer, e tu me exiges, com um tom irônico que nunca usaste comigo, que eu vá
- E então?! Tu fazes sacrifício (deu uma entonação peculiar a esta frase), e eu faço sacrifício também, o que pode haver de melhor? A luta da grandeza de alma. Para que então felicidade conjugal?”
Nesta única vez que o título do livro é citado na voz de Sierguiéi entendo estar a chave explicativa da novela: o amor de um casal é um canal que necessita uma fruição comum e exige a ambos que essa comunicação não seja cessada, nem sequer por uma resignação da vontade de uma das partes.
Desse modo o triste casal vai se afligindo, têm filhos e estes não são capazes de realegrar essa felicidade dos primórdios do casal. Eles experimentam algumas situações no limiar de uma traição, mas era mera tentação sem nada ocorrer. Curiosamente, ninguém parece ter feito nada de errado, ambos se respeitam e desejam o bem um do outro. Mesmo assim o amor se esvanece.
Num último suspiro desse amor, María protesta:
Escuta! — disse eu, tocando-lhe o braço, para que se voltasse para mim- Escuta: por que nunca me disseste o que querias, para que eu vivesse exatamente de acordo com a tua vontade, por que me deste liberdade, que eu não sabia usar, porque deixaste de me ensinar? Se quisesses, se me orientasses de outro modo, não teria acontecido nada, nada — disse eu, com uma voz em que me expressava cada vez mais fortemente uma fria mágoa e censura, em lugar do antigo amor.
Mas já não é possível fazer voltar o antigo amor, ambos mudaram, são como outros. E neste mesmo diálogo Sierguiéi responde mais tarde:
Sim — disse ele, como que dando prosseguimento à sua reflexão — todos nós, e particularmente vós mulheres, devemos viver sozinhos todo o absurdo da existência, a fim de voltar à própria vida; e não se pode crer em outra coisa. Ainda estavas longe de ter vivido então todo o absurdo simpático e encantador com que eu me extasiava em ti; e eu te deixei acabar de vivê-lo e senti não ter o direito de te constranger, embora para mim o tempo já tivesse passado havia muito.
Essa resposta aparentemente cruel parece antecipar um existencialismo e revela outra questão importante: o amor faz seu trabalho de unir um casal. Uma vez tendo-o feito ele devolve o casal às suas respectivas solidões incomunicáveis que todos possuímos em vida. Entendendo, não sem dor, esse significado. O casal compreende que entrou numa nova fase de vida, com seu contentamento próprio. Ninguém pode dar o que não tem ao outro, nem exigir o que não existe mais. É assim que penso que María compreendeu o que lhe passara:
A partir desse dia, terminou o meu romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa, e que ainda não acabei de viver…
3. CRÍTICA
Enfim! É muito curioso na relação do casal houveram muitos momentos em que María tocava uma peça de Beethoven, sonata nº 13 em Mi bemol menor, intitulada de “Quasi una fantasia”. Na primeira ela tocava-o muitas vezes, principalmente o terceiro movimento da peça, o mais lento e doce, sem conseguir terminar porque nos ensinamentos de Sierguiéi ele não permitia que ela fizesse o último movimento. Mas uma última vez ao fim do livro, ele a elogia porque tocou com inteligência. Inteligência sim, mas sem sensibilidade como havia antes. Ela domina a peça, mas falta-lhe aquela alma inocente do começo da história.
Vale a pena ouvir e comparar (minuto 7'30'')! Pois penso haver um paralelismo entre estes dois movimentos últimos da música e as duas partes do romance: um movimento é doce, suave e delicado, como a primeira parte do livro; o outro é agitado e ao fim faz lembrar o penúltimo movimento, como na última conversa que o casal teve no desfecho do livro.
Eis que o amor do casal foi, como a música de Beethoven: quase uma fantasia. Não foi uma fantasia, porque era real. Mas jaz agora na doce lembrança do casal.
4. SIGNIFICADO
Por fim, vejamos o que é o amor, segundo o extraído dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola:
Convém atender a duas coisas.
A primeira é que o amor se deve pôr mais nas obras que nas palavras.
A segunda é que o amor consiste na comunicação reciproca, a saber, em dar e comunicar a pessoa que ama à pessoa amada o que tem ou do que tem ou pode; e, vice-versa, a pessoa que é amada à pessoa que ama; de maneira que, se um tem ciência, a dê ao que a não tem, e do mesmo modo quanto a honras ou riquezas; e assim em tudo reciprocamente, um ao outro.
Relembrando a chave explicativa do livro, o que este livro ensina que amar nada mais é que uma comunicação especial entre dois viventes, e ela precisa de existir sem que o canal se feche, necessitando da contribuição de ambos. Porém essa comunicação tem também seu limite, por conta de uma solidão radical do ser humano, que existe pelo simples fato de sermos, cada um de nós, um único ente, separado dos demais: ninguém se dissolve em outro. Devemos nos contentar com o limite de uma partilha comedida. Ela é possível e nos consola da solidão da vida.