Iracema | José de Alencar

1. Introdução


História trágica de amor entre o português Martim e a Índia tabajara Iracema, que ganhou fama de ser a principal obra do Movimento Indigenista de nosso país buscando contar a história mítica da nossa origem nacional. 


2. Sinopse

A história se passa em 1600 com Martim, um português encarregado da defesa do território brasileiro, na localidade que hoje é o Ceará, mas acaba se perdendo na floresta. Iracema, a índia tabajara que é "a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira" se depara com Martim enquanto descansava sobre as árvores e pensa se deparar com um inimigo, motivo que a faz atacá-lo com uma flecha. Martim não se defende e Iracema então crê que não deveria tê-lo ferido e aproxima-se dele:

A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: — Quebras comigo a flecha da paz? — Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

Iracema leva o ferido para sua aldeia para tratá-lo, onde é bem recebido, com exceção de Irapuã, índio apaixonado por Iracema.  Nessa estadia inicia-se o romance entre Iracema e Martim e o conflito moral de Iracema: esta é uma virgem guardiã de um licor sagrado de Jurema, tendo ela portanto um tipo de voto religioso de castidade.

A história avança com festejos sagrados e guerras nas quais Martim participa com os tabajaras. E nesse desenrolar da história chega um momento em que a índia quebra seu voto de castidade com Martim:

Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n’alma. O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre o peito do guerreiro. Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d’alma o himeneu do amor.

Isto condena a índia à morte, porque quebrou o voto sagrado e inspira também ódio a Martim, de modo que os tabajaras com a liderança de Irapuã e Caubi, irmão de Iracema, passarão a perseguir o casal.

Iracema e Martim fogem da aldeia tabajara e vão da floresta para o litoral, refugiando-se numa cabana construída por Martim numa praia abandonada. 

Martim, no entanto passa muito tempo fiscalizando o litoral para evitar inimigos, momento este que ele faz uma aliança com Poti, índio pitiguara e nesse contexto ele chega a fazer espécie de celebração guerreiro-iniciática a Tupã, onde consagra-se irmão de Poti e defensor de Iracema.

Nesse contexto, Martim passa boa parte do tempo melancólico com saudades de sua terra natal, Portugal, enquanto fiscalizava as terras. Já Iracema passa muito tempo sozinha, preocupada e sofrendo sozinha na cabana e pensando que sua morte seria a libertação de seu amado. Nesse contexto que ela se percebe grávida. Gesta e tem este filho sozinha, dando a ele o nome de Moacir, que quer dizer "filho do sofrimento".

O parto e a tristeza profunda de todas essas desventuras faz Iracema morrer de tristeza, mas não sem antes ver Martim pela última vez, estendendo seus braços para lhe entregar o filho Moacir em suas mãos, e nesse último suspiro dramático assim morrer.

— Recebe o filho de teu sangue. Era a tempo; meus seios ingratos já não tinham alimento para dar-lhe! Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá. Iracema não se ergueu mais da rede onde a pousaram os aflitos braços de Martim. O terno esposo, em que o amor renascera com o júbilo paterno, a cercou de carícias que encheram sua alma de alegria, mas não a puderam tornar à vida: o estame de sua flor se rompera. — Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amavas. Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos. O lábio emudeceu para sempre; o último lampejo despediu-se dos olhos baços.

 

Depois do desfecho trágico, Martim sai de seu refúgio com o filho para Portugal, mas só tem paz ao retornar para a terra onde sua amada Iracema morrera: é agora um brasileiro. E volta com outros portugueses "para fundar com ele a mairi dos cristãos". Poti ali é batizado e junto com Martim passam a avançar sobre as terras brasileiras, não sem mencionar a saudade de Martim pelos tempos de felicidade que viveu com Iracema.

3. Crítica




A obra é inteiramente recheada de termos indígenas e destaques à paisagem nacional: esse cenário é o que demonstra ser um dos pontos mais importantes da obra, além de algum conhecimento da cultura indígena.

Mas o livro inteiro soa um artificialismo que não convence. Gonçalves Dias tinha consciência disso, como se depreende na sua Carta ao Dr. Jaguaribe:

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. (...) O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida.

Mas nada soa natural nessa obra, e sim, bastante artificial. O público letrado tem o gosto romântico e não aceitaria a história de outra maneira. Hoje, esse tipo de literatura mais entedia o leitor moderno do que entretém.

Há certos trechos da obra que parecem não fazer sentido, como Martim que faz um rito de guerreiro ao deus Tupã: ele apostatou-se e deixou de ser cristão? Não é o que se indica ao fim da obra, em que seu irmão Poti é batizado: isso, suponho, mais parece querer demonstrar um honroso intercâmbio entre o índio e o português, amizade esta que formaria uma identidade do povo brasileiro.

Talvez essas pequenas contradições sejam os senões que José de Alencar diz na mesma carta citada acima de que percebeu ao reler a obra, mas o fato de ter publicado a obra às pressas não o permitiu uma revisão.

Bem ou mal, esta principal obra do movimento indigenista tem inspirações históricas: Martim Soares Moreno realmente existiu e participou da exploração da capitania do Ceará, onde conheceu Poti, que depois do batismo veio a se chamar Antônio Felipe Camarão. É hoje reconhecido e honrado como capitão-mor do Ceará, e teve um papel fundamental no reconhecimento do Tratado de Tordesilhas, vez que este lutou pela coroa lusitana expulsando os holandeses que ali haviam naquelas terras.

É necessário numa história mítica buscar certas origens históricas. Na história antiga os gregos tiveram como mito fundador a guerra de Tróia contada na Ilíada de Homero. Também outros países buscaram inspirações em histórias reais para se contar histórias míticas de homens excelentes (na espanha, El Cid; na França, Amadis de Gaula). Esse tipo de história parece apresentar um tipo de história honrosa e propor como modelo de humano um certo tipo de "homem excelente" perante o qual serve de modelo para uma unidade nacional.

Não poderia ser diferente em nosso país: recentemente declarado a independência, o chamado movimento indigenista buscou nos elementos da terra e no índio os materiais para identificar esse tipo de modelo de herói. Por isso, apesar do nome de Iracema, penso o personagem principal ser realmente Martim. Iracema é, de fato, muito passiva nessa história, sofrendo e padecendo durante todo o percurso. É como que "raptada" (algo como o Rapto das Sabinas) por Martim e nessa união é que se formará o povo brasileiro: Moacir, isto é, o caboclo, é quem é proposto como a raça brasileira.

O problema da raça não era pequeno para a época: a identidade nacional, como se entendia, supunha uma unidade de um povo; esta unidade compunha-se também por uma certa unidade racial (que depois da genética e sobretudo das consequentes grandes guerras do século XX isso tudo veio a cair por terra, mas era algo que preocupava na época: lembram-se da teoria do embranquiçamento que Pedro II chegou a adotar?).

Mas apesar das paisagens e o conhecimento das línguas indígenas, apenas o agrupamento de elementos materiais não é suficiente para a formação de uma unidade nacional. Esta questão permaneceu em aberto e creio que essa tentativa artificial acabou atraindo mais tarde sátira ao indigenismo: o herói sem caráter, Macunaíma de Mário de Andrade.


4. Significado

Eu vejo um paralelismo muito claro de inspiração bíblica nessa obra. Quando Iracema dá a luz a Moacir, que quer dizer "filho da dor" isto lembra muito bem à passagem de Raquel, que morre para dar a luz à Benjamim, nome dado por Jacó que quer dizer, grosso modo, "filho da alegria". Mas antes desse nome, Raquel havia lhe chamado de "filho da dor", isto é, Benoni (Gênesis, 35;16-20):

E partiram de Betel. Quando estavam a pouca distância de Éfrata, Raquel deu à luz, e o seu parto foi penoso. Durante as dores do parto, a parteira disse-lhe: “Não temas, porque ainda terás este filho”. E, estando prestes a render a alma – porque estava já agonizante – ela chamou o filho de Benoni; o seu pai, porém, chamou-o Benjamim. Raquel expirou e foi sepultada no caminho de Éfrata, hoje Belém. Jacó erigiu uma estela sobre seu túmulo; é a estela do túmulo de Raquel, que existe ainda hoje.
Ou seja, Iracema é como Raquel e Martim como o Jacó (Israel), desta nova terra brasileira. Nada como a força alusiva para enaltecer uma narrativa mítica. Mas isso deixa alguns pontos em aberto: Moacir é o filho da dor. Quando será filho da alegria?

O movimento indigenista trouxe a conhecimento os elementos materiais com toda a força de comparações e apresentações da linguagem indígena. Mas isso não foi suficiente para dar de fato uma identidade nacional. A obra também ignora por completo a miscigenação negra (não esquecida na Batalha dos Guararapes, esta ideia sim traz uma ideia de unidade nacional na confluência do europeu, do ameríndio e do africano). O que é ser brasileiro?

Iracema, nossa Raquel, morreu e confiou seu filho caboclo ao europeu. De fato, mesmo depois da independência brasileira nós fomos regidos por legislação portuguesa (utilizamos as Ordenações Manuelinas até o advento do Código Civil de 1907, que diz muito mais sobre o esquadro legal sobre o qual ditamos os nossos usos e costumes). Isto é, o espírito do europeu, muito mais do que do índio foi o que determinou as decisões de império desta terra, cujos elementos materiais formaram o desenho sobre o qual este espírito animou o povo.

José de Alencar tentou articular esse espírito "europeu" com os elementos que encontrava como sendo as diferenças específicas da nossa terra. Não é tarefa fácil, por isso o esforço é louvável, mas não creio que rendeu grandes frutos: não convence. 

Mas ainda hoje quando lembramos de algo que nos alegra sobre a nossa identidade nacional, dizemos sobre a grandeza territorial, a beleza de nossas paisagens, a cultura diversificada... "é lindo, mas tem um povinho..." todos nós ouvimos isso alguma vez na vida, não é mesmo? São sempre os elementos materiais da nossa terra que povoam nossa imaginação com a alegria de ser brasileiro... isso sim eu acredito que é um contributo que começou inicialmente do esforço deste movimento indigenista.

Mas somos ainda filhos da dor. Ainda hoje não nos entendemos como brasileiros: não entendemos ao certo a característica distintiva de nosso espírito.

Lucas Souza

Advogado, amante da leitura, percebi que a escrita é um prolongamento natural desse amor que os próprios livros nos pedem. Assim nossos pensamentos e reflexões se desdobram a partir dos meus estudos de arte, literatura, filosofia, religião, psicologia, história e línguas. Acompanhe-me para desvendar um pouco mais sobre estes assuntos.

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